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Alocução do bispo ao 98º Sínodo Diocesano da Igreja Lusitana
«Celebrai com Júbilo ao Senhor» (Salmo 100)
Paróquia de S. João Evangelista
Vila Nova de Gaia, 5 de Outubro de 2020

Salmo 100
«Celebrai com Júbilo ao Senhor, todos os moradores da terra.
Servi ao Senhor com alegria; e apresentai-vos a Ele com canto.
Sabei que o Senhor é Deus: foi ele, e não nós, que nos fez povo e ovelhas do seu pasto.
Entrai pelas portas dele com louvor, e em seus átrios com hinos: louvai-o e bendizei o seu nome.
Porque o Senhor é bom, e eterna a sua misericórdia; e a sua verdade estende-se de geração em geração.»
 

Prezados irmãos e irmãs em Cristo,
 
«Que as bênçãos de nosso Senhor Jesus Cristo e o amor de Deus e a união com o Espírito Santo estejam com vocês todos» (2 Coríntios 13,13)

Saudação em tempos de pandemia
 
Saúdo com muita alegria e emoção todos os membros e participantes no 98º Sínodo da Igreja Lusitana. Neste particular contexto de pandemia que coloca em causa a nossa própria segurança, estar hoje presente fisicamente nesta reunião sinodal é, já por si, um verdadeiro ato de resiliência e de amor para com Deus e a sua Igreja. É pois muito importante e significativo estarmos juntos. Importante, porque deste modo asseguramos o necessário funcionamento da Igreja enquanto Instituição. Significativo, dado que reafirmamos assim que a Igreja é comunhão (cosmos união) e é presença real de pessoas. É estarmos fisicamente disponíveis uns para os outros, vivendo uma proximidade de relação humana impossível de atingir por outros meios e plataformas

Dou, assim, graças a Deus por todas as Igrejas da nossa Diocese terem reaberto precisamente no passado dia 31 de Maio, Dia de Pentecostes e por, na ação e condução do Espirito Santo, os nossos templos permanecerem abertos para acolher e promover o encontro da comunidade, particularmente no contexto da Eucaristia dominical. Sei que a grande maioria do povo da Igreja tem vindo a vencer naturais inseguranças e resistências e se tem feito presente na sua comunidade. Sei também que outros não regressaram ainda ao seio da Igreja. A sua decisão deve ser respeitada e acompanhada pastoralmente, através do contacto telefónico, da visitação e da oração. A Eucaristia pode e deve ser levada a casa dos irmãos que se sentem ainda incapazes de frequentar o culto dominical. Neste tempo que atravessamos, a solicitude e o cuidado pastoral têm que se expressar junto dos que ficaram mais isolados e afastados do convívio social e em particular dos mais idosos, que sentem a sua acrescida vulnerabilidade e dependência.
 
Percebemos também hoje, e na sequência da pandemia, o aumentar das necessidades sociais e humanas na comunidade que nos rodeia. Deixemo-nos interpelar, pois, por aqueles e aquelas que se nos dirigem pedindo ajuda e apoio material e humano e que na grande maioria dos casos revelam sempre, também, uma grande, grande necessidade de ajuda e alimento espiritual. Sabendo que muitas das nossas comunidades têm já uma resposta efetiva e organizada, insto as demais comunidade e paróquias que ainda o não fazem, a desenvolver um serviço de apoio humano e social regular e cada vez mais consistente e abrangente. Nesta área de missão, a da diaconia (serviço), há sempre algo mais a fazer e pela graça de Deus há muitas pessoas e instituições que, mesmo não pertencendo à Igreja, se mostram disponíveis para com ela colaborar na ajuda desinteressada aos mais necessitados. Estou certo que o recém-criado Secretariado de Diaconia da Igreja Lusitana irá ajudar a promover e coordenar o trabalho que nesta área é desenvolvido, quer ao nível das paróquias quer ao nível de outros departamentos e secretariados.
 
O sentido da Celebração
 
No corrente ano de 2020 a Igreja Lusitana está a celebrar o duplo aniversário dos 140 anos da sua constituição e dos 40 anos da sua integração na Comunhão Anglicana. Apesar do contexto adverso, foram já promovidas diversas celebrações e eventos bem como material alusivo, que têm ajudado o povo da Igreja no aprofundamento da sua identidade eclesial e consequente reforço para a missão a que é chamado. O tema escolhido «Celebrai com Júbilo ao Senhor» (Salmo 100) pode parecer algo paradoxal perante o contexto de pandemia, de sofrimento e de morte com que somos diariamente confrontados. O que há para Celebrar num tempo de provação? Que direito nos assiste em Celebrar quando muitos à nossa volta perderam a razão e o sentido do seu caminhar? Que sentido esta Celebração confere ao caminhar do tempo presente? Que alegria é esta que ousa manifestar-se na tristeza?
 
Estas e outras interrogações são legítimas e necessárias, até para apurar o sentido de uma fé que se quer encarnada, que assume os acontecimentos e dramas da vida e se deixa por eles interrogar e desafiar.

Neste sentido, a leitura orante do próprio Salmo 100, bem como do conjunto do livro dos Salmos, ajuda-nos a ver e a perceber os sinais dos tempos presentes, à luz do caminhar na história do povo de Deus e do modo como Deus se tem feito presente nesse caminhar. No drama e no sofrimento já outrora experienciados pelos nossos antepassados na fé, percebemos nós hoje a mesma exigência que a vida nos coloca. Nos seus seculares anseios, expectativas e temores, como que já estão contidos os nossos, revelando-nos assim uma mesma condição humana, que permanece igual no seu sentir e na sua necessidade de Deus ao longo do passar dos tempos e dos séculos. É a oração que brota da vida e que irrompe da nossa condição. É a oração que se sustenta não em fórmulas ou palavras decoradas, mas que deixa fluir e eleva a Deus a essência mais profunda de cada pessoa. Na oração assim feita como que estamos e nos assumimos «inteiros perante Deus»1.

Foi deste modo que para mim e sei também que para muitos de vós, a leitura diária e orante dos Salmos no tempo de confinamento se revelou um poderoso e sólido esteio, capaz de orientar e dar sentido aos mais íntimos sentimentos e emoções que então, e de uma forma particular, se fizeram presentes no nosso dia-a-dia. A oração dos Salmos permite-nos ficar mais integrados, mais fortalecidos e confiantes perante as exigências presentes, dado que nos revelam a consciência da proximidade de Deus junto do seu povo, junto de nós e de cada um, seja no passado ou no presente que construímos.

A exortação do salmista para que celebremos com Júbilo ao Senhor e que serve de mote este ano à nossa Igreja, encontra-se precisamente vertida no Salmo 100, que sendo um dos mais curtos salmos bíblicos não deixa de ser verdadeiramente um grande Hino de Louvor e de Ação de Graças a Deus! Era provavelmente recitado à entrada do Santuário, quando o povo de Israel, após a sua jornada de peregrinação, ia oferecer os sacrifícios de comunhão. Começa com uma exortação universal dirigida a todos os habitantes da terra para que o louvor e a adoração a Deus sejam feitos com entusiasmo, alegria e cânticos de júbilo.

A razão deste jubiloso louvor prende-se tão só com a solicitude de um Deus criador que fez de Israel o seu povo e o acompanha enquanto pastor. É um Deus bom porque o seu amor e a sua fidelidade permanecem para sempre.
Devemos recuperar e aprofundar esta consciência de que a Igreja é hoje o povo escolhido, o novo Israel amado e sustentado por Deus. Verdadeiramente só esta consciência de um amor e de uma fidelidade que permanecem para sempre, independentemente da circunstância histórica vivida, nos pode e deve levar a «celebrar com Júbilo» em tempo de pandemia. O nosso Júbilo é pois sereno e confiante. Não é triunfalista e excludente. É respeitoso e é um louvor realizado muitas vezes com lágrimas e em temor, mas que se assume e se manifesta publicamente.

Celebrar pois, no sentido bíblico, remete-nos para um ato de confiança, mesmo e principalmente num contexto de adversidade. Celebrar não é tanto fazer ou executar mas antes colocarmo-nos humildemente perante Deus e a sua transcendência. É abertura ao mistério de um Deus que por pura graça e amor se revela a cada um e a todos e connosco quer caminhar. É assumir a vida na sua complexidade e colocá-la em ação de graças e súplica ardente perante o Criador. Verdadeiramente assim, e só assim, poderemos «celebrar com Júbilo ao Senhor».
 
Chamados à Cooperação
 
Neste ano de 2020 os dois aniversários que celebramos devem ser vistos como dois marcos do caminhar de um povo chamado e escolhido por Deus. O devir histórico de qualquer Igreja só pode assentar nas mãos de Deus e como tal, com júbilo e alegria, celebramos cantando: «As tuas mãos dirigem meu destino. Ó Deus de amor, folgo em que seja assim»2. Neste particular contexto de pandemia que naturalmente vai reconfigurar muitos modos de estar e de fazer, a Igreja , fiel ao seu chamamento e à sua vocação , não pode deixar de reafirmar a sua confiança em Deus! Somos chamados a uma atitude de resiliência coletiva e individual, não só física, mental e social como também espiritual. Ainda recentemente elevámos a Deus a Oração do Dia que dizia : «… deste-nos o escudo da fé e a espada do Espírito, fortalece-nos para resistirmos …»3.
 
Verdadeiramente ainda não percebemos bem as implicações e consequências, para a Igreja, da pandemia que vivemos. Umas começam a desenhar-se, outras o tempo irá aclarar. A Igreja, que somos todos nós, é chamada a ter desde já uma atitude «pró-ativa». Lidando com os desafios e problemas presentes percebe que importa ajudar a reconstruir de uma nova forma.
 
Sendo parte integrante da sociedade portuguesa e por ela chamada a intervir e a cooperar, a Igreja deve estar atenta ao «Plano de Recuperação e de Resiliência» apresentado pelo Governo e cujo desenvolvimento irá marcar o nosso país no decorrer da próxima década até 2030. Interessante perceber que os três grandes eixos deste plano - Resiliência – Transição climática – Transição digital - se cruzam também com os objetivos de uma Igreja cuja sustentabilidade presente e futura tem que assentar na valorização e exploração do seu património humano e material, no assumir de uma Eco-Teologia com implicações no modo de ser Igreja e de estar perante o Mundo e no saber colocar as oportunidades do mundo digital ao serviço da Missão.
 
A Igreja é chamada a esta cooperação com todos os homens e mulheres de boa vontade que assumem que os grandes desafios que se colocam hoje à família humana só podem ser enfrentados conjuntamente, dada a sua magnitude. Importante aqui recuperar o sentido primeiro do termo Oikouméne e que se refere ao «mundo habitado». As questões da paz, da justiça e da integridade da Criação, desafios e problemas hoje intensamente vividos na nossa «Oikos» - casa comum - são o fermento para o nosso pensar teológico e para o agir de Missão. Tal requer da parte das Igrejas uma unidade no pensamento e na ação capaz de os resolver. Ou seja, um Ecumenismo encarnado e que brota da vida, capaz de reconciliar e de unir o que está separado e aparentemente irreconciliável.
 
A pandemia do Covid 19 veio mostrar a todos, de uma forma muito clara, como tudo está inter-relacionado a uma escala global. Vivemos juntos num «mesmo contexto económico e social e numa só casa ecológica»4. A crise de um modelo económico que se sustenta na exploração desenfreada de recursos naturais, acentua a crise ecológica que por sua vez coloca em causa o nosso próprio bem-estar e sobrevivência. Percebemo-nos parte de um todo e de uma rede de relações. Percebemo-nos iguais na nossa comum fragilidade e dependentes uns dos outros, independentemente da nossa raça e religião. Urge uma sustentabilidade não apenas virada para o imediato, mas capaz de assegurar às novas gerações melhores condições de vida. Sustentabilidade significa, pois, «preencher as necessidades presentes sem comprometer as possibilidades das gerações futuras»5. Neste trabalho, a dimensão económica tem que caminhar a par com a dimensão social e ambiental, na procura de múltiplas fontes de recursos que se complementem entre si.
 
Um Tempo diferente, mas de novas oportunidades
 
Sem o esperarmos ou fazermos algo para tal, estamos a ser protagonistas de uma vivência histórica e coletiva que ficará certamente nos anais da história. Temos muito já «que contar aos nossos netos e nalguns casos aos nossos bisnetos». Cabe-nos tudo fazer para um evoluir renovado e assente em padrões de igualdade, justiça e solidariedade. Não devemos desejar apenas o regresso «a uma nova normalidade». Só é verdadeiramente novo aquilo que muda por dentro e não repete os erros do passado. Cresce assim a exigência de coerência, qualidade e sustentabilidade naquilo que nos propomos desenvolver e alcançar enquanto Igreja para os próximos tempos e anos. Esta exigência deve ser assumida por cada um de nós e refletida aos diferentes níveis e realidades da Diocese. Estamos todos conscientes que, até ao encontrar e aplicar global das vacinas capazes de fazer frente à pandemia, iremos viver tempos de particular exigência no gerir de emoções e naturais receios. Requer-se um sentido de equilíbrio confiante, capaz de integrar o necessário realismo perante o presente com a capacidade de olhar em frente e acreditar no futuro. Ao nível das comunidades e Igreja que somos, o ano pastoral que agora se iniciou será necessariamente diferente do habitual. Atividades e eventos tradicionais terão que dar lugar a novas formas de planear e de realizar. Não fiquemos parados à espera que a «rotina do tempo» promova aquilo que já não voltará a acontecer como antes. Como sempre o Espírito Santo, o Espírito criador e renovador, estará ao nosso lado para nos orientar, mas a Igreja tem que fazer o seu trabalho de casa. É um tempo, sem dúvida, de novas oportunidades que requer oração, unidade e sentido de sacrifício.

A tal nos chama também a Década do Discipulado Intencional que estamos a viver. Hoje mais do que nunca «o Mundo precisa da Igreja e a Igreja precisa de discípulos assumidos»6. Neste contexto, a Igreja que somos, na riqueza da história que lhe assiste e que hoje celebramos, deve ousar e propor uma vivência acolhedora e inclusiva. Com realismo mas também com ousadia devemos traçar um plano de missão que nos faça chegar, ao longo desta década, a novas cidades e vilas, não esquecendo naturalmente as comunidades já existentes e nestas as mais frágeis.
 
Continuemos, pois, o nosso caminhar com o mesmo Espírito celebrativo e de louvor jubiloso a Deus. Façamo-lo com a alegria e a confiança de um povo em caminho que pertence a Deus e n’Ele reconhece o seu Pastor!
 
Que assim seja!
+ Jorge
Outubro de 2020

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1 Leonardo Boff – In O Senhor é meu Pastor
2 Salmos e Hinos – Hino 358
3 LIL, Oração do 26º Domingo Comum, pág. 214
4 Apelo a uma Economia de Vida em Tempo de Pandemia – WCC,WCRC,LWF e CWM
5 Carlota Quintão - Elaboração do Plano Estratégico da AETP
6 Intentional Discipleship and Disciple Making, - An Anglican Guide
 

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