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Vulnerabilidade

«Ser Igreja em tempos de pós-pandemia: o que aprendemos e que sinais de esperança» 1
 

Começo por agradecer o convite que me foi feito para partilhar convosco uma reflexão sobre o tema da vulnerabilidade no contexto da pandemia do Covid. Saúdo cada um de vós aqui presente e exprimo a minha alegria pelo nosso reencontro presencial que é em si mesmo um sinal de esperança e de confiança no futuro.

A redescoberta da graça batismal

O tempo da pandemia do Covid foi e continua a ser um tempo particular da nossa história coletiva e individual. Súbita e inesperadamente fomos confrontados com desafios e exigências que nunca tínhamos imaginado. Ficámos privados da liberdade de circulação, impossibilitados de estar juntos. As Igrejas fecharam e ficámos sujeitos a uma ameaça latente capaz de fazer perigar a própria vida. A pandemia do Coronavírus atingiu-nos por igual, sem exceção de classe social, económica ou religião. Foi verdadeiramente global.

Nesta pandemia percebemo-nos iguais na nossa comum humanidade e necessitados uns dos outros para ultrapassar um desafio que só poderá ser vencido com o trabalho e a união de todos.

Percebemos que somos todos muito frágeis e verdadeiramente não somos senhores do nosso tempo e do nosso destino. Percebemos a nossa vulnerabilidade. Percebemo-nos iguais nos nossos sentimentos, necessidades e expectativas apesar das nossas diferentes tradições culturais, sociais e religiosas.

E por isso, porque nos percebemos iguais, fomos capazes (paradoxalmente!) de comunicar mais uns com os outros e também de orar uns pelos outros. Verdadeiramente este tempo de confinamento foi o tempo do Espírito Santo! Como se explica que apesar de estarmos tão distantes uns dos outros nos sentíssemos tão unidos e próximos e irmanados num mesmo Espírito? Como se explica que a Igreja apesar da adversidade e das portas cerradas, se tenha reconstruído e reconfigurado e tenha crescido em cada casa, em cada lar e em cada família? S. Paulo na sua carta aos Coríntios dá-nos a resposta quando diz: «Não sabem que não pertencem a vocês mesmos, mas que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vocês e que Deus vos deu?» (I Cor. 6,19). Sim, somos verdadeiramente Templo do Espírito Santo onde quer que estejamos e perante qualquer adversidade que estejamos a viver!

Durante o período do confinamento tivemos a graça de viver uma espiritualidade «sem o Templo e sem os Sacramentos». Fomos assim confrontados com a necessidade de assumir a verdade que está em nós e de viver e expressar toda a dimensão espiritual do nosso ser. Sem a mediação do Templo e dos Sacramentos assumimos tão só o que está em nós e nos faz ser cristãos, ou seja, o Espírito Santo. Assumimos a graça batismal! Fomos, pois, Igreja de um modo diferente, mas não menos importante e significativo, dado que o Espírito é o mesmo!

Este sentir e esta redescoberta é uma bênção dado que nos confronta connosco próprios e a nossa vocação de batizados em Cristo. Nenhum vírus, nenhum sofrimento e nenhuma adversidade por mais intensa que seja, pode apagar aquilo que indelevelmente está em nós e nos foi concedido por puro amor e pura graça. Assim, podemos afirmar, que a efusão do Espírito Santo e o Pentecostes foram acontecendo já em cada dia do nosso confinamento. E assim sei, que renascemos para a fé, e deste modo a Igreja que somos também renasceu dado que os tempos de exigência forte são sempre oportunidade para tempos de forte crescimento espiritual e humano. São tempos ricos de experiências e vivências inesperadas, que nos retiram da nossa margem de conforto e de segurança e que revelam a nossa comum fragilidade e necessidade uns dos outros. São ricos paradoxalmente 3 numa exigência de sofrimento, carregada de angústia e de dor. Ricos no assumir corajoso de uma liberdade e responsabilidade que percebemos agora tão necessárias ao alicerçar da sociedade cada vez mais justa e solidária que todos desejamos. E ricos ainda no colocar ao serviço dos outros, os imensos dons e recursos espirituais e materiais que Deus, o Senhor da História, sempre nos concede.

Aqui a nossa imensa gratidão por essa «multidão impossível de contar» de homens e mulheres de boa vontade, verdadeiros santos e santas do nosso tempo, que desde o início desta pandemia e com sacrifício próprio, têm trabalhado abnegadamente pelo bem-estar dos outros e pelo salvar de vidas humanas. Refiro-me aos trabalhadores da saúde, aos cientistas, aos nossos governantes, aos trabalhadores da limpeza, do trabalho social, aos padres e pastores das Igrejas e muitos outros. Eles e elas foram no meio de muitas trevas, a luz e a chama do Amor de Deus na defesa do valor sagrado da vida em particular no cuidado com os mais débeis e idosos. A luz do Amor de Deus esteve sempre presente e irradiou no trabalho solidário de tantos homens e mulheres. Através deles e do seu exemplo a Esperança fez-se presente e demonstrou-se mais uma vez que o ser humano sobrevive no coletivo e que as inteligências não se somam, multiplicam-se.

A memória que acalenta a esperança

Neste tempo de pós COVID as nossas orações e a nossa solicitude pastoral estão com todos os que choram a perda dos seus queridos e com os que vivem com angústia as exigências do tempo presente.

Ao olhar para a fase pós-pandemia, não podemos esquecer a experiência traumática que os últimos anos representaram para milhões de pessoas em todo o mundo.

Não podemos nem queremos esquecer as vítimas mortais. Grande parte sofreu sozinha, morreu longe dos seus e sem possibilidade de um último adeus.

Não podemos esquecer os seus familiares e amigos, sobretudo os que não se puderam despedir dos doentes hospitalizados ou institucionalizados, e de todos aqueles que nem sequer puderam fazer-lhes o funeral.

Não podemos esquecer a pandemia da solidão, que atingiu todos, mas, particularmente, os muitos idosos, que perderam a vida ou a lucidez, fazendo-nos ver que a vida dos mais velhos não é menos preciosa do que a dos mais novos.

Não podemos ainda esquecer as crianças e os jovens marcados por depressões e problemas de natureza psíquica.

Não esquecer é fazer memória e quando fazemos memória do passado algo de novo acontece no presente. A Igreja que somos é por natureza o povo da memória. Uma memória que se sustenta no mandamento de Jesus «Fazei isto em memória de mim» (Lucas 22,19). É a memória da entrega, da paixão, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo que dominicalmente celebramos na Eucaristia. Celebrar hoje a Eucaristia é fazer memória da paixão de Cristo que assume hoje também a paixão de todos aqueles que sofreram e continuam a sofrer com a pandemia do Covid. Em cada Eucaristia celebrada somos chamados também nós a estar com os que sofrem e na ação do Espírito Santo dar um sentido de ressurreição ao seu sofrimento. A memória Eucarística gera sempre uma presença solidária que nos leva a oferecer a nossa vida pelos outros.

A memória Eucarística dominical é sempre um sopro novo do Espírito Santo que nos relança no nosso caminhar histórico e nos impede de querer voltar e regressar à normalidade de um passado que já carecia de renovação.

Neste tempo de pós pandemia é também necessário afirmar a esperança. Esperança no reforço de relações sociais fraternas, justas e portadoras de futuro para todas e todos, conscientes do risco que existe de regresso ao «velho normal».

Esperança por estarmos mais preparados para enfrentarmos juntos os desafios da pós-pandemia e outros que se nos coloquem.

Esperança fundada nos atos de solidariedade, dedicação e atenção de que fomos atores e testemunhas ao longo deste longo ‘inverno’. Uma grande lição que aprendemos é que a capacidade de transmitir Esperança advém do bom exemplo dos atos generosos e de amor da nossa vida. O que os outros fizeram e continuam a fazer de bom por nós confere-nos um sentido de esperança e de confiança no caminhar da vida.

Uma Comunhão espiritual e solidária

É verdade que este nosso encontro decorre num contexto mundial muito difícil. A pandemia aumentou a pobreza e as desigualdades sociais a nível mundial, a crise climática ganha de ano para ano enormes proporções e temos agora e aqui bem perto a guerra na Ucrânia.

É verdade então e como afirma S. Paulo que «os dias que correm são maus», mas é também o mesmo S. Paulo que na sua carta aos Coríntios afirma: «Agora é o tempo em que Deus concede a sua ajuda e o dia em que se pode alcançar a salvação» (II Cor. 6,2). Para ele o tempo da fé, o tempo do Messias e o tempo da construção do Reino não é um tempo futuro, mas antes um tempo presente que desde já nos confere o sentido da eternidade. Ou seja, e como já foi referido «em S. Paulo a verdadeira escatologia talvez não seja outra coisa que a transformação da experiência das coisas penúltimas»2 . O que move S. Paulo e nos deve mover a nós é a confiança e a esperança num tempo presente e futuro no qual Deus está sempre presente. Porque Deus é o Senhor da História e do Tempo o nosso compromisso exprime-se no aqui e agora da nossa existência sem perder nunca o horizonte de eternidade que a fé na divindade e na ressurreição de Cristo nos confere.

Vivemos, então, um tempo Kairós, um tempo de oportunidade em que se joga de uma forma muito determinante o nosso futuro e o futuro das gerações vindouras. A urgência do tempo presente e as consequências futuras do que fazemos ou deixamos de fazer agora, só podem ser enquadradas na advertência que S. Paulo faz na carta aos Efésios: «não façam as coisas de qualquer maneira, mas procurem compreender bem qual é a vontade do Senhor». (Efésios 5, 17). A contribuição da Igreja para o tempo presente passa, pois, por contribuir para uma cultura da responsabilidade individual e coletiva na construção de um futuro melhor para as gerações vindouras.

Porvoo é uma Comunhão de Igrejas que no atual contexto de pós pandemia, de guerra na Europa e de desastres climáticos vê reforçada a sua razão de ser e a sua missão. «Ninguém se salva sozinho» e só unidos somos capazes de enfrentar os desafios que se nos oferecem e a resposta a estes desafios não pode ficar entregue apenas aos políticos. As nossas Igrejas possuem imensos recursos humanos e espirituais que devem ser colocados ao serviço da sociedade. Todos percebemos que a crise atual não é apenas de natureza sanitária, mas fundamentalmente uma crise espiritual e de sentido. O que cada Igreja souber desenvolver de bom e de belo irá naturalmente motivar as demais. A cultura e a espiritualidade da comunhão e da interdependência que está na base da criação de Porvoo revelam-se hoje acertadas e caminho a ser seguido.

Estamos a viver juntos enquanto Igrejas de Porvoo o «Ecumenismo do sofrimento». O sofrimento causado pela pandemia que não respeita as fronteiras entre os cristãos. O sofrimento que aproxima as pessoas e cria a unidade. O desafio de Missão que Deus nos oferece enquanto Igrejas de Porvoo é que possamos juntos oferecer fé, esperança e caridade.

Especial atenção e confiança devemos dar aos nossos jovens que são já os protagonistas da nossa História. Relembro aqui a peregrinação que 30 jovens das Igrejas de Porvoo realizaram em conjunto a Santiago de Compostela no Verão do ano de 2015 e com o tema "Jesus a fonte de água viva na peregrinação da vida» (S. João 4,5-42). Eles foram capazes de enfrentar juntos a exigência e o perigo do caminho. A esperança e a alegria que sentiam em estar juntos transformou os obstáculos em caminhos e os caminhos em novas oportunidades. Jesus Cristo caminhou também com eles no meio das suas dificuldades e juntos e unidos em Cristo todos saíram reforçados na sua confiança para enfrentar as crises e as pandemias da vida. Esta peregrinação dos nossos jovens, feita no passado, como que nos indica o caminho a realizar no presente e confere esperança para o nosso futuro.

Para o enfrentar do futuro e da História da salvação que se nos oferece recordo o pensamento que diz : «Deus não nos oferece segurança mas antes o vulnerável amor no menino de Belém. É o Amor do Deus connosco que pode eliminar o nosso medo»3 .

Saber viver com a nossa vulnerabilidade e confiar em Deus é a grande lição e mudança que aprendemos com a pandemia.

Que Deus a todos nos abençoe!

+ Jorge Pina Cabral, Bispo diocesano da Igreja Lusitana (Comunhão Anglicana em Portugal)


1 Comunicação apresentada no Encontro de Primazes e Bispos Presidentes da Comunhão de Porvoo ocorrido de 11 a 13 de outubro 2022 na cidade finlandesa de Tampere
2 Giorgio Agamben na catedral de Notre-Dame, em Paris, em março de 2009.
3 Konrad Raiser – Christmas 2002 

 

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