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Reflexão sobre Evangelho de São Marcos (Cap.1, vers. 1-8)

O Precursor e o Advento
 
O Advento, estação litúrgica que estamos a viver, é um período especial, não só por anteceder o Natal, mas, sobretudo, por apontar três desafios à cristandade: a) o Advento histórico, ou seja, a primeira vinda de Jesus, portanto, o passado; b) o Senhor que quer ser, hoje, nosso hóspede, e Se faz sempre presente no meio de nós, particularmente e de modo substancial e real na Eucaristia, portanto, o aspecto presente; c) finalmente, remete-nos para o futuro, ou seja, a Sua segunda vinda, portanto, o aspecto escatológico.
 
Embora o Advento não seja essencialmente tempo de penitência, antes de preparação, o texto de Marcos, que é lido no Segundo Domingo do Advento do Ano Litúrgico B, retoma a profecia do Antigo Testamento, que conduz ao Novo Testamento, de que não será possível a preparação para a vinda do Senhor sem que passemos pelo processo de arrependimento, conversão e pela experiência da gratuidade de Deus no perdão dos pecados. Por isso, João Baptista nos diz claramente que a preparação da vinda do Messias passa por uma transformação total, por uma nova atitude, por uma nova escala de valores, por uma radical mudança de pensamento que leve a reequacionar a nossa vida e a colocar Deus no centro da nossa existência.
 
O Evangelho de Marcos é escrito para a comunidade sofrida de Roma, ansiosa, por isso mesmo, por exemplos práticos, e começa directamente com as palavras “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (1,1), entrando, de imediato, no tópico essencial. E nada melhor, para uma Igreja que está a sofrer com perseguições, que está a ver as suas casas queimadas e vandalizadas, e os seus a serem atirados para as arenas, do que, de uma forma prática, dar a conhecer mais e melhor Jesus, Filho de Deus que tem o poder sobre o pecado, sobre o mal, sobre a morte, passando mesmo por cima da sua infância e juventude, e indo, portanto, directamente, às Suas acções. Jesus é apontado como servo (“O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida para resgatar a humanidade” – Mc 10,45). Reparemos que já no capítulo dois aparece a acusação de blasfémia, cujo castigo é a pena de morte. No começo do capítulo três a Sua morte já está decidida. O anúncio da Sua morte, mais do que qualquer dos outros Evangelhos, é o tema central, dando uma ênfase especial ao Seu sofrimento.
 
Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (1,1). Este começo do Evangelho de Marcos é sintomático, pois só há três relatos bíblicos com a referência ao conceito “princípio”:
 
1. O preâmbulo do Evangelho de São João. “No princípio de tudo, Aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e Ele mesmo era Deus” (Jo1,1). Este princípio é o da eternidade. É um tempo que, por estar fora do tempo, ninguém pode limitar. Isto é, quando tudo teve um começo, o Verbo já existia.
 
2. O começo do Livro de Génesis. “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1,1). Aqui, a eternidade invade o tempo, agora sim, o tempo já pode ser contado, apesar de o Homem ainda não ter conseguido determinar quando foi esse princípio.
 
3. O começo do Evangelho de São Marcos. “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). Mostra-nos a radicalidade da incarnação de Deus na Pessoa de Jesus – o Filho de Deus. Este princípio de Evangelho não se esgota, contudo, com o nascimento, a vida, a morte e ressurreição de Jesus, mas continua por acção do Espírito Santo, pois a obra de Deus continua na História. Por isso, Marcos refere “princípio do Evangelho”, ou seja, o lugar onde encontramos a força e as referências fundamentais para a nossa vida e para a tarefa, que cabe a todos nós cristãos, de fazer chegar esta mensagem a todas as pessoas de todos os tempos. Mais do que Cristo ter dado origem ao Evangelho pelas Suas palavras e acções, Ele é o próprio Evangelho, Ele é a Palavra, a Boa Nova da salvação para a humanidade.
 
Como o mensageiro antigo (“Como é bom ver chegar sobre as montanhas o mensageiro que anuncia a paz. É o portador da boa nova da vitória. Ele vem dizer a Sião: o teu Deus é Rei!” Isaías 52,7), João Batista proclama o alegre anúncio, que culmina em Jesus (cf. Mc 1,14-15) e ressoa nas comunidades cristãs como apelo a anunciar a mensagem de libertação no mundo inteiro.
 
João Baptista, apesar de ser uma personagem do NT, pode ser considerado como o profeta do AT que prepara o caminho de salvação, anunciando o Messias, anúncio esse já preparado pelo profeta Isaías (cf. Is 40,3-4). Para além de Isaías profetizar a voz que grita a preparação do caminho do Senhor, descreve como essa ordem deve ser cumprida, ou seja, levantando os vales, rebaixando as montanhas, aplanando o cimo dos montes e nivelando os terrenos escarpados.
 
A História da Humanidade foi preparada por Deus para a vinda de Jesus, capacitando, por um lado, o mundo grego com uma língua universal, por outro, capacitando o mundo romano com a pax romana e com a abertura das estradas em todo o Império para que o Evangelho pudesse chegar mais longe e mais rápido e, por fim, o mundo judaico com as profecias e a esperança na vinda do Messias. E agora, sim, Deus vai enviar o Seu mensageiro, João, o precursor, anunciado por Isaías, para ser a voz de Deus, quebrando, assim, quatrocentos anos de silêncio profético e para preparar o coração do povo para a chegada do Messias.
 
É por isso que João insiste na profecia de Isaías do levantamento dos vales, ou seja, unir o que está separado, preenchendo esse abismo, muitas vezes de mágoas, da separação de uns com os outros, essa fissura que rompe a comunhão com Deus; rebaixando as montanhas e aplanando o cimo dos montes, ou seja, acabarmos com a nossa soberba, com a nossa altivez, removendo a vaidade do nosso coração; nivelando e endireitando os caminhos tortos e escarpados, ou seja, corrigirmos o que está mal na nossa vida e revestirmo-nos de integridade e de rectidão. Todas estas acções são fundamentais, pois a estrada na qual Jesus vai passar para Se manifestar ao mundo é a nossa vida.
 
Fiquemos atentos, e preparemo-nos. A esperança não pode, nunca, esmorecer, mas resistir. Esperança nascida do discernimento espiritual e mental. Construído no nosso dia a dia, mesmo em tempo de sofrimento e esmorecimento. O tempo que vivemos é tempo de resistir, pela solidariedade, ao egoísmo e ao individualismo característicos da nossa sociedade de hoje. Ser sensível é ser humano. Ser humano é ser sensível e olhar o mundo sem indiferença, mas com compaixão e afecto que conduzam à transformação. Vivamos intensamente este Tempo do Advento, pois o Advento nos ensina a não nos cansarmos de esperar, pois O que esperamos vai chegar. “Marana thá – Vem, Senhor Jesus!” (1Cor 16,22 e Ap 22,20).
 
V.N.Gaia, 14.12.2022
José Sequeira.


 

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