COMENTÁRIO BÍBLICO
30º Domingo Comum – Ano B
24out2021
Jeremias 31,7-9; Salmo 126; Hebreus 5,1-6
S. Marcos 10,46-52
46 Chegaram a Jericó. Ao sair Jesus da cidade com seus discípulos e com uma grande multidão, estava sentado à beira da estrada um cego mendigo, chamado Bartimeu, filho de Timeu. 47Quando soube que era Jesus, o Nazareno, começou a clamar: Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim! 48Muitos mandaram que se calasse, mas ele clamava ainda mais: Filho de Davi, tem compaixão de mim! 49Jesus parou e disse: Chamai-o. Chamaram o cego, dizendo-lhe: Tem ânimo; levanta-te, ele te chama. 50Lançando de si a sua capa, de um salto, levantou-se e foi ter com Jesus. 51Perguntou-lhe Jesus: Que queres que eu te faça? Respondeu-lhe o cego: Mestre, que eu tenha vista. 52Disse-lhe Jesus: Vai, a tua fé te curou. No mesmo instante, recebeu a vista e o foi seguindo pela estrada.
1. “Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim!”, foi o grito docego mendigo (que vivia de esmolas) quando se apercebeu que a grande algazarra de gente no caminho tinha a ver com Jesus. Certamente já tinha ouvido falar dEle, pois, chama-lhe filho de David e, ao sabê-Lo ali, é tomado por uma manifestação entusiástica como quem se apercebe que pode estar bem perto do milagre. Que oportunidade! É que naquele tempo a cegueira simbolizava as trevas do espírito e a dureza do coração (Isaías 6, 9; S. Mateus 15, 14; 23, 16-26; S. João 9, 41; 12, 40) e era considerada como um castigo de Deus (Êxodo 4, 11; S. João 9, 2); Atos 13, 11); pelo queos cegosse viam obrigados a mendigar (S. João 9, 1). Portanto, esforça-se por fazer que a sua presença seja notada por Jesus, não para o normal pedido duma esmola, mas, para muito mais, o grito pela visão, a libertação daquela condição de indigente, a possibilidade de alcançar a sua dignidade e sobrevivência entre os seus conterrâneos. Numa palavra, a completa mudança de vida. Grita, uma e mais vezes e cada vez mais alto, mesmo desobedecendo aos que o queriam calado. Grita com forte determinação, com grande confiança, porque sabe que só em Jesus está o milagre, como aquela mulher enferma que dizia para si mesma “Se eu apenas lhe tocar a veste, ficarei curada” (S. Mateus 9, 19-22).E Jesus não o desaponta: “a tua fé te curou”.
E segue Jesus pelo caminho. Como? Integrado na multidão, com manifestações de alegria? Sobre isto o Evangelho é parco em palavras. Só o evangelista Lucas explica “seguia-O glorificando a Deus. Também todo o povo, vendo isto, dava louvores a Deus” (S. Lucas 18, 43). Podemos intuir, então, Bartimeu, agora, nem cego nem mendigo, seguia a Jesus pelo caminho, agradecido. Na sociedade atual, na conversa diária está a perder-se a palavra ‘obrigado(a)’ e, muito mais, ‘muito obrigado(a)’, quer entre uns e outros como também entre nós e Deus. É que, no nosso olhar enfermado de pequenos e desviantes corpúsculos, vamos perdendo a consciência – como a tinha Bartimeu – de que precisamos verdadeiramente da compaixão transformadora de Jesus.
2. São vários os relatos dos Evangelhos que referem encontros fortuitos (casuais) de pessoas com Jesus. Atentemos nalguns: o da mulher samaritana (S. João 4, 1-30.39-42), o do cego Bartimeu (S. Marcos 10, 46,52), o do publicano Zaqueu (S. Lucas 19, 1-10), o da mulher adúltera (S. João 8, 1-11), e do ladrão na cruz (S. Lucas 23, 39-43). Verificamos, então, que na surpresa do encontro com Jesus aconteceu sempre alguma coisa. Não ficaram de mãos vazias. Jesus não deixou nunca perder a oportunidade de expressar acolhimento cuidadoso e de mostrar aceitação e misericórdia no sentido mais humano do termo. Á samaritana propôs-lhe um sentido para a sua vida; a Bartimeu concedeu a visão; a Zaqueu a possibilidade de se retratar e libertar dos seus erros e desmandos; á mulher adúltera (prostituta) mostrou-lhe uma outra visão para a sua vida e concedeu-lhe uma oportunidade para ganhar a dignidade perdida; e até ao ladrão, na cruz, a certeza de que a sua morte era a passagem para a paz na compreensão de Deus. Percebe-se, também, por outro lado, que nas suas surpresas todos os “agraciados” expressaram de diversos modos a consciência das suas vulnerabilidades e um coração aberto e confiante à presença e palavra de Jesus.
Para nós o desafio é encontrá-lO nos ziguezagues do nosso viver. Não nos está visível, nem O podemos tocar sensorialmente, mas existem circunstâncias em que a Sua presença se torna evidente, em particular, nas situações de verdadeira e profunda humanidade. Nesses momentos tropeçamos em Jesus e só não O conseguimos ver se estamos tomados pela cegueira da indiferença perante o mal e os que o praticam, pela cegueira dos que só vêm o dinheiro e a dos que desesperam por aquilo que não têm, pela cegueira dos que se veem perfeitos e só apontam as imperfeições dos outros. Na verdade, Jesus encontra-se connosco quando reconhecemos no outro o nosso irmão, quando os males do mundo que nos rodeia nos tocam e exigem a nossa compaixão e o nosso compromisso para com a mudança. E se O “vemos” e “ouvimos” o nosso coração rejubila, bate mais forte, e exprime-se em gestos de compaixão e humanidade que iluminam o caminho, nosso e dos outros.
3. “Muitos mandaram que se calasse”. Uma manifestação clara de insensibilidade perante o sofrimento daquele cego mendigo. Esqueciam o que era ser cego naquela sociedade e apenas se preocupavam com os decibéis do seu clamor inflamado por uma confiança – a que Jesus chama fé –, um grito de esperança que animava todo o seu corpo. Estava em causa a sua libertação da cegueira e, como tal, a sua dignidade como ser humano. Não se lhes importou, e mandaram-no calar.
Na semana que passou teve lugar a cerimónia de concessão de honras de Panteão Nacional ao diplomataAristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus, em 1940, por, contra as ordens expressas de Salazar, em plena II Grande Guerra, conceder indiscriminadamente vistos de passagem a milhares de pessoas em grande aflição e perigo de ser assassinadas pelo terror nazi, que já tinha ocupado a França e, na altura, estendia os seus tentáculos a outros países da Europa. Portugal era, então, uma porta de saída para muitos judeus e outros perseguidos. A sua decisão foi tomada após três dias de luta interior, pois, conforme o próprio afirmou: “Mesmo que me destituam, só posso agir como cristão, como me dita a minha consciência; se estou a desobedecer a ordens, prefiro estar com Deus contra os homens do que com os homens contra Deus” (ver Jornal digital ‘Sete Margens’, 20out2021). Ou seja, Aristides de Sousa Mendes, naquele enquadramento político, encontrou-se com Jesus, foi iluminado na sua consciência e como cristão informado pela Palavra de Deus, colocou a sua sensibilidade humana ao serviço de todos aqueles e aquelas que libertou proporcionando-lhes uma outra “visão” para o futuro das suas existências, pondo em risco a sua vida e a sua sobrevivência e dos seus familiares. Este, sim, é um santo, não porque era católico, não porque desobedeceu à autoridade de Salazar, mas porque se deixou tomar por uma fina e profunda sensibilidade humana que o levou a um propósito maior, ajudar todos os que fugiam da saga nazi, qualquer que fosse a sua religião, a sua cultura, a sua raça, os que, como Bartimeu, clamavam: “quero viver”.
+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana