27º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 3/10/2021

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
27º Domingo Comum – Ano B
3out2021 

Génesis 2,18-24, Salmo 128; Hebreus 1,1-4.2,9-11
 
S. Marcos 10,2-16 
2Chegaram alguns fariseus e, para o experimentarem, perguntaram-lhe se era lícito a um homem repudiar sua mulher. 3Ele respondeu: Que vos ordenou Moisés? 4Replicaram eles: Moisés permitiu dar carta de divórcio e repudiar a mulher. 5Mas Jesus lhes disse: Pela dureza do vosso coração, ele vos deixou escrito este mandamento. 6Porém, desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher; 7por essa razão, o homem deixará a seu pai e a sua mãe 8e será com sua mulher uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne. 9Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem. 10Em casa, os discípulos, de novo, o interrogaram sobre isso. 11Ele respondeu: Aquele que repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério contra a primeira; 12e, se ela repudiar seu marido e casar com outro, comete adultério.
13 Então, lhe traziam alguns meninos para que os tocasse; os discípulos repreenderam aos que os trouxeram. 14Mas Jesus, vendo isso, indignou-se e disse-lhes: Deixai vir a mim os meninos, não os impeçais, porque dos tais é o reino de Deus. 15Em verdade vos digo: Aquele que não receber o reino de Deus como menino de modo algum entrará nele. 16Abraçando os meninos, os abençoava, pondo as mãos sobre eles.

1. Normalmente as versões bíblicas intitulam a primeira parte do Evangelho de hoje como “discussão sobre o divórcio”. Mas, não há nada de mais equívoco, pois, a questão do divórcio no judaísmo daquele tempo era bem distinta daquela que se levanta no nosso tempo. Na verdade, os fariseus não perguntaram a Jesus se estava ou não de acordo com o divórcio. Questionaram-nO tão só sobre se era lícito a um homem repudiar sua mulher.”E apresentavam como fundamento que Moisés permitiu dar carta de divórcio e repudiar a mulher.”Era, portanto, do normativo societário do tempo aceitar o direito ao divórcio por parte dos homens. Realmente, naquele tempo, na prática, o direito a divorciar-se era em exclusivo do homem. Havia algumas exceções em que a mulher podia pedir o divórcio, mas, além de escassas eram de muito difícil aplicação (José Mª Castillo). Ou seja, a pergunta apresentada pelos fariseus a Jesus tinha subjacente não o divórcio, em si, mas, a questão dos quase ilimitados privilégios do homem sobre a mulher, como advogava, na altura, a escola teológica do rabino Hillel. Afinal, o que eles queriam saber era o que Jesus pensava sobre aquele posicionamento teológico que, no contexto do casamento, concedia a exclusividade da declaração de divórcio ao homem. Por outras palavras, aquela pergunta tinha subjacente a questão da desigualdade de direitos entre o homem e a mulher.  

2. Para responder aos fariseus, Jesus recorre ao projeto original do Criador: desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher; por essa razão, o homem deixará a seu pai e a sua mãe e será com sua mulher uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne.”Com esta explicação Jesus ensina que o homem e a mulher, porque “obra” dum mesmo Criador, apresentam-se – e têm de ser vistos – como uma unidade criada que fundamenta uma perfeita igualdade em dignidade e direitos, embora sejam patentes as suas diferenças. Como alguém afirmou “a diferença é um facto; a igualdade é um direito”. E declara o que se ouve com solenidade nas cerimónias de casamento religioso: o que Deus ajuntou não o separe o homem”. Ou seja, o que Deus ajuntou (homem e mulher) em igualdade e em dignidade não pode ser separado por interesses ínvios de poder e submissão. Podemos, então, concluir que o Evangelho de Jesus Cristo não aceita (é contra) a desigualdade de direitos entre homem e mulher e, em particular, quando assumem o compromisso de um projeto conjunto de amor na busca de felicidade. E isto é tão importante para Jesus que, interrogado pelos seus discípulos, repete: Aquele que repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério contra a primeira; e, se ela repudiar seu marido e casar com outro, comete adultério”. Quer dizer, marido e mulher são iguais no direito de repúdio e também iguais na pena da lei, se aplicável.
Entendamos, para Jesus esta questão da igualdade entre géneros e, especificamente, entre marido e mulher não é somente de ordem jurídica, do lícito ou ilícito, do dever, mas, também da essência e do caminho da vida. No rito do casamento da Igreja Lusitana (Livro de Liturgia, página 265) explica-se que “o casamento entre homem e mulher é um dom de Deus na criação, e um meio da sua graça, um santo mistério”, pelo que o que o rege tem de provir duma outra “instância”, do amor entre duas pessoas que se dispõem a caminhar na ambiência da conversão. Ou seja, essa estrada, por vezes muito esburacada, para ser calcorreada sem acidentes, precisa duma sensibilidade fina, duma humildade sábia e duma paciência infinda. E tais ingredientes só se conseguem com o encontro íntimo, aberto e sincero com Jesus Cristo, porque Ele é “o caminho, e a verdade e a vida” (S. João 14,6).  

3. Dois apontamentos.
O primeiro. Jesus sabia muito bem o quanto naquele contexto religioso a mulher era segregada e violentamente diminuída na sua dignidade. Por isso, explica, com preocupação pedagógica, que a regra que se lê em Deuteronómio 24,1-4 apenas foi escrita “pela dureza do vosso coração”. Ou seja, Jesus disse-lhes (e a nós também) que nem toda a Lei que nos é apresentada nas Escrituras é expressão da vontade de Deus. Pode muito bem, antes, ter seguido os ditames dadureza do coração humano, isto é, os seus preconceitos e esquemas pensantes e interesseiros.

O segundo apontamento. Um grupo de fariseus foram encontrar-se com Jesus com o propósito de O experimentar, pôr à prova. Outros foram os que procuraram encontrar-se com Ele para saber quem era (Nicodemos – S. João 3, 1-21, os discípulos de João Batista – S. João 1, 35-39); para Lhe pedir o milagre (o centurião romano – S. Mateus 8, 5-13; a mulher cananeia – S. Mateus 15, 22-28;Jairo, pela sua filha- S. Mateus 9,18); para O prender (os guardas no Getsémani – S. Marcos 14, 43-46). Isto é, todos os que iam ao encontro de Jesus tinham motivações diversas, intentos vários. E, nós, quando O procuramos que motivo nos move a ir ao Seu encontro? Queremos encontrá-Lo para nos convertermos? Para nos deixarmos transformar pela Sua disponibilidade e pela Sua misericórdia? Para descobrirmos o caminho da nossa libertação interior (esquecimento de nós mesmos) que nos prepara para sermos para os outros? Ou, somente vamos a Ele para lhe pedirmos o milagre, embora legítimo? 

+ Fernando 
Bispo Emérito da Igreja Lusitana

 
 

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