15º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 11/7/2021

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
15º Domingo Comum – Ano B
11jul2021 

2 Samuel 7,18-29; Salmo 132,10-18; Efésios 1,1-10

S. Marcos 6,7-13

7Jesus chamou os doze discípulos, começou a enviá-los dois a dois, e deu-lhes poder para expulsarem os espíritos maus. 8Recomendou-lhes: «Não levem nada para o caminho, a não ser o cajado. Não levem comida, nem saco, nem dinheiro no bolso. 9Levem as sandálias que tiverem nos pés mas não levem muda de roupa.» 10Disse-lhes também: «Quando entrarem numa casa fiquem lá até saírem dessa terra. 11Se nalgum lugar não vos receberem ou não quiserem ouvir-vos, quando saírem dessa terra, sacudam o pó das sandálias como aviso para essa gente.» 
12Então os discípulos partiram e pregavam às pessoas que se arrependessem. 13Expulsavam muitos espíritos maus e curavam muitos doentes, ungindo-os com azeite.

1. A “Missão dos Doze”, assim é chamado o Evangelho de hoje em algumas versões bíblicas. Neste caso, a palavra Missão significa ‘Envio’ com um encargo (incumbência) bem determinado, «expulsarem os espíritos maus» ou, «espíritos imundos», como também se chamava aos demónios. Essa Missão está bem definida em S. Mateus 10, 7-8 «proclamai que o Reino dos Céus está próximo: curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios». Isto é, Jesus estabelece uma relação direta entre a proclamação do Reino e tudo o que é dar vida, dignificar a vida das pessoas. Não há aqui qualquer referência à apresentação de uma doutrina ou a uma imposição de uma “regra de fé”. Antes, uma preocupação com o sofrimento, nos seus variados tipos, incluindo o da própria interioridade pessoal. E isto é coerente com a afirmação de Jesus «vim para que tenham vida» (S. João 10, 10).
Ora, uma organização define a sua Missão à luz da análise das circunstâncias exteriores em que ou onde pretende trabalhar. Por isso, Jesus disse-lhes «envio-vos como ovelhas para o meio de lobos» (S. Mateus 10, 16). Olhando à nossa volta e lendo os escritos de quem estuda a situação da sociedade do nosso tempo, percebemos que vivemos num tempo em que a esperança se vai desvanecendo. Por um lado, a economia invade e manipula todas as áreas humanas tudo maculando à luz de interesses e valores dúbios. Por outro, a ideia (crença) de um progresso, ou desenvolvimento económico infinito e consequente melhoria do estado do mundo, está a desintegrar-se, o que conduz a uma consciencialização da incerteza do futuro. Além disso, como explica Viriato Seromenho Marques, “são cada vez mais numerosas as perturbações psíquicas causadas pela crise global do ambiente e clima”.[i] Ou seja, as circunstâncias novas e, por vezes, inesperadas, com que os povos se têm de defrontar exigem reflexão aturada e muita oração para as instâncias cristãs ponderarem a sua Missão, em vez de gastarem as suas energias em arregimentar “crentes”. Abençoado Papa Francisco, que Deus nunca te falte com o Seu Espírito.

2. Jesus deu ‘poder’ aos Apóstolos mas, depois, envia-os à míngua: «Não levem nada para o caminho, a não ser o cajado»– em Mateus e Lucas, nem sequer o cajado – na total dependência daqueles a quem são enviados a pregar o Reino de Deus. Isto é, iam com ‘poder’, mas, vulneráveis. Não será este o modelo existencial que Jesus oferece a quem quer trabalhar na Sua messe: o da confiança plena no Mestre e o do coração sempre aberto e disponível? Como refere S. Paulo, «Deus escolhe o que é fraco para confundir o que é forte» (I Coríntios 1, 27). Não é fácil, convinhamos! Vulnerabilidade implica estar indefeso perante múltiplos riscos. Como a semente pequenina e frágil que depois se torna numa árvore forte e frondosa. Por isso, Jesus, que envia, capacita-os, dá-lhes o ‘poder’ de libertar do mal quem vive em sofrimento. Não é ‘força’, simplesmente ‘autoridade’ para expulsar espíritos maus, pois a expulsão do mal vem de Deus, «a fim de que, como diz a escritura, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor» (I Coríntios 1, 31).
A natureza humana tem uma tendência para o ‘poder’. E, naturalmente, entre os discípulos de Jesus também acontecia. Uma vez procuraram saber junto de Jesus quem era o maior, o mais importante, o mais poderoso no Reino dos Céus. E Jesusrespondeu: «Aquele que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus» (S. Mateus 18, 1-4). Ainda, noutra ocasião, em conversa com escribas e fariseus, Jesus disse: «o maior dentre vós será aquele que vos serve» (S. Mateus 23, 11). Ou seja, o ‘poder’ na perspetiva de Jesus está em Deus, e só nEle. Quando Deus, por Jesus, o concede a alguém não é para o exercício do ‘poder’ em si mesmo, mas para a realização de algo que se enquadra na vontade de Deus, como no caso do Evangelho de hoje, «para expulsarem os espíritos maus». Só assim se compreende o modo como St. Agostinho (séc. IV) define o seu papel de bispo: “Presidir, de forma alguma; servir, sim”[ii]

3. No poema da Criação temos a Árvore do conhecimento do bem e do mal (Génesis 2, 9), uma espécie de institucionalização do mal. No Livro de Jó relata-se uma conversa entre Deus e o Diabo sobre o destino de Jó (Jó 1, 6-12), um tu-cá-tu-lá entre o bem e o mal. No NT Jesus considera que as 18 pessoas que morreram no acidente ocorrido na construção ou reparação da torre de Siloé não eram culpadas, pelo que a sua morte não foi sanção divina (S. Lucas 13, 4-5). E Jesus cura enfermos, ressuscita mortos e expulsa demónios (espíritos maus) sem questionar as razões dos sofrimentos das pessoas. Parece, portanto, que a génese do mal e o porquê da sua existência não levantavam quaisquer preocupações nos autores bíblicos. Ou, então, isso quer significar a consciência da incapacidade humana para compreender e explicar as razões do mal físico ou consequência de desastres e de catástrofes. O mal existe e pronto. Na verdade, não encontramos explicações para as doenças e calamidades que nos acontecem (como o cancro, a COVID 19, as calamidades decorrentes das alterações climáticas, etc.), pelo que apenas nos cabe aceitá-las, na nossa total impotência e vulnerabilidade e assumir a condição de vítimas. Há quem chame a isto “a dimensão trágica da existência”[iii]. Porém, mesmo perante as impossibilidades da sua compreensão devemos procurar meios possíveis de as ultrapassar. Foi o que Jesus fez durante a Sua vida terrena e a razão pela qual enviou os doze apóstolos a «expulsar espíritos maus e a curar doentes». Jesus não erradicou o mal da terra, enfrentou-o com as Suas curas, possibilitando às gentes do Seu tempo continuar a encarar a vida com alegria e esperança. É aqui que radica todo o sentido da fé. Acreditar sempre na bondade e no amor de Deus, apesar da existência do mal, como diz S. Paulo, «esperando contra toda a esperança» (Romanos 4, 18).  
 
+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana


[i] Jornal de Letras, de 30/6 a 13/7
[ii] A. Hamman, “Os Padres da Igreja”, Paulinas, 1985, pág. 231
[iii] Fernanda Henriques, “7Margens” de 11/4/2020

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