14º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 3/7/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
14º Domingo Comum - Ano C
3jul2022

1 Reis 21, 1-21; Salmo 5, 2-9; Gálatas 6, 7-18
 
S. Lucas 10, 1-12.17-20
1Depois disto, o Senhor escolheu setenta e dois outros discípulos e mandou-os adiante dele, dois a dois, a todas as povoações e lugares aonde ele havia de ir. 2E disse-lhes: «Há uma colheita abundante, mas os trabalhadores são poucos. Peçam ao dono da seara que mande mais trabalhadores para fazer a colheita. 3Vão, mas reparem que vos mando como cordeiros para o meio de lobos. 4Não levem bolsa nem saco nem sandálias, e não parem a cumprimentar ninguém pelo caminho. 5Em qualquer casa onde entrarem, digam primeiro: “Haja paz nesta casa.” 6Se lá houver pessoas de paz, a saudação ficará com elas; se não houver, ficará convosco. 7Não andem de casa em casa. Fiquem numa só casa e comam e bebam do que vos oferecerem, pois todo o trabalhador merece o seu salário. 8Quando chegarem a uma povoação que vos receba, comam do que vos servirem. 9Curem todos os doentes que lá houver e digam ao povo: “O reino de Deus está a chegar.” 10Mas em qualquer povoação onde entrarem e não vos quiserem receber, vão pelas ruas e digam: 11“Até o pó desta povoação, que se nos pegou aos pés, nós sacudimos como protesto.” Mas fiquem a saber que está a chegar o reino de Deus.» 12Jesus disse ainda: «Afirmo-vos que, no dia do juízo, os habitantes da cidade de Sodoma serão tratados com menos dureza do que essa gente.»

17Os setenta e dois discípulos voltaram muito contentes e diziam: «Senhor, até os espíritos maus nos obedecem quando lhes falamos em teu nome.» 18Jesus respondeu-lhes: «Eu via Satanás a cair do céu como um raio. 19Escutem! Eu dei-vos poder para pisarem cobras e escorpiões e vencerem a força do inimigo, sem que vos aconteça mal. 20Mas não se alegrem só porque os espíritos maus vos obedecem. Alegrem-se antes por terem os vossos nomes escritos no Céu.»

1. O envio dos setenta e dois discípulos é uma exceção no universo sinótico. Tanto o evangelho de S. Mateus (10, 7-16) como o de S. Marcos (6, 8-11) referem somente o envio dos Doze. No, Evangelho de hoje, S. Lucas relata-nos um outro envio ampliando o número de missionários para 72. E este registo do duplo envio de missionários em S. Lucas tem um sentido. O primeiro discurso (S. Lucas 9, 1-6) era dirigido aos Doze (número das tribos de Israel) e o segundo foi dirigido aos setenta e dois discípulos, exatamente o número de nações pagãs que naquele tempo se consideravam existentes na Terra. Isto é, em S. Lucas a missão confiada por Jesus destina-se a todos os povos e envolve todos os homens e mulheres batizados considerando-os discípulos(as) missionários(as) enviados(as).   
Este é porventura o mais importante e mais profundo problema com que se debate o cristianismo atual. Como fazer com que os(as) batizados(as) compreendam que a missão de propagar a fé é também sua e não apenas dos clérigos e pastores? Como catapultar os crentes para atitudes e vivências de afirmação da fé e de abertura de espírito enformadas pelo Evangelho? Como alguém disse, “não somos só chamados a viver a alegria e o encanto da fé”. Isto se ainda e realmente nos sentimos alegres na fé e encantados pela fé! Ir ou ficar onde estamos, mas, onde quer que seja, ser expressão duma fé viva que alegra e encanta. Eis o grande desafio do cristianismo neste nosso tempo.

2. E Jesus disse-lhes: “Vão, mas reparem que vos mando como cordeiros para o meio de lobos. Não levem bolsa nem saco nem sandálias (…)”. Será que isto entusiasma alguém para a missão? Quando se quer elaborar um novo projeto que produza serviços ou novos produtos destinados ao mercado começam-se logo a definir os parâmetros para captar pessoal para a sua realização. Entre outros, salários, carreira profissional e outras gratificações. Com Jesus foi e continua a ser diferente. O que conta é o desprendimento, ir sem dinheiro, sem aprovisionamento, sem sandálias para o caminho, num estilo de vida onde vigora o desapego, a humildade, e a abnegação. Ir em entrega total ao futuro e à incerteza que ele carrega.
Não será esta a luta entre o “ser” do pastor (diácono, presbítero, bispo ou outro) e o “ser” de Jesus no pastor? Em S. Lucas 9, 57-62 pode ler-se que aquele Mestre que se havia manifestado antes como um ser fascinante, de palavras de bondade, de misericórdia, de humildade, “endurece o rosto” para explicar aos discípulos que, se querem manter a decisão de segui-Lo, devem conhecer as suas condições, a radicalidade desse seguimento. Aí estão as condições, no capítulo 10. Ide conscientes dos perigos; ide desprendidos, confiantes na presença de Deus com a esperança nos olhos e nas ações. O que se espera do(a) pastor(a) senão a generosidade exemplar, a responsabilidade, a condição desprendida de quem se devota à pregação e vivência do Evangelho para que Jesus nasça e reine no coração dos homens. A missão sumariza-se na expressão “curar os doentes”, isto é, proporcionar saúde, criar vida, humanidade e “anunciar o Reino”, o sustentáculo dessa ação transformadora.  

3. E eles lá foram, dois a dois, como o Mestre lhes indicou, para que se apercebessem da condição comunitária do evangelho, que não deviam esquecer. Realmente, nós, os batizados somos convidados a não agir sozinhos, mas, sempre com Cristo e em comunhão com os irmãos. E “voltaram muito contentes” porque, explicaram, “os espíritos maus lhes obedeceram”. O ‘vírus’ da ‘autoridade’, do ‘poder’, da imposição das ideias à força a fazer-se presente na ação missionária pastoral. Jesus corrige-os, “não se alegrem só porque os espíritos maus vos obedecem. Alegrem-se antes por terem os vossos nomes escritos no Céu.”
Em mais de dois mil anos passados que enorme deve ser o livro, ou muitos os livros, onde estão escritos os nomes daqueles e daquelas que foram instrumentos da expansão da fé, por atos grandiosos ou por pequenos gestos, todos por sinais da presença do Espírito. Quantas vezes sem se darem conta, mas apenas através do assumir da sua crença em sinceridade e na sua prática em serviço humilde a quem precisava. Em boa verdade, anunciar o Reino de Deus começa na intimidade do nosso ser com Deus e na consciência de que vivemos acima de tudo da iniciativa de Deus, do dom da Sua comunicação. A partir daí tudo o resto na nossa vida ganha sentido, qualquer esfera da nossa vida fica subordinada à nossa comunhão com Deus. É nessa comunhão que apreciamos o dom da Sua Palavra e crescemos na familiaridade e amizade com Ele. Assim se escreve o nosso nome no céu.

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana

 
 

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