«Uma árvore erguida, por cada mulher caída»
Aquilo que vos digo, digo-o a todos: estejam bem atentos (Marcos13, 37)
 
O ritual foi repetido por dezoito vezes, tantas quantas as mulheres assassinadas em Portugal desde o início do ano de 2017 pelos seus maridos, companheiros e namorados. Começava pela referência ao nome e à idade da vítima, seguido da data e contexto da morte. Depois e simbolicamente, uma fita roxa (cor do Advento litúrgico) era atada, por uma mulher, à volta de um pequena árvore plantada num vaso. Uma árvore por cada mulher assassinada e uma frase-grito de oração que se elevava no ar e que se repetiu em voz alta por cada uma das vítimas: «uma árvore erguida, por cada mulher caída». A árvore era simbolicamente um carvalho. Uma espécie autóctone que é forte, resistente ao fogo e às intempéries mais diversas, a evocar a resistência e a luta de muitas mulheres, que resistem anos e anos a múltiplas formas de violência nas suas vidas.
 

Esta cerimónia pública, bem no centro da cidade do Porto, foi preparada e dirigida por mulheres. Impressionou-me a sua dignidade, determinação e organização. Eram apenas um pequeno punhado de mulheres, mas estavam determinadas a evocar a vida e a memória de outras. Ali, em plena praça pública, davam o seu testemunho e expunham sentimentos e emoções e o seu propósito firme de pôr fim à violência contra as Mulheres, dado tratar-se de uma questão de direitos humanos, de dignidade e de justiça.
 
A poucos dias do início do Tempo litúrgico do Advento e em plena campanha [#16diasativismo2017] este evento alertou-me para o modo como nos deixamos ou não interpelar pelos muitos e repetidos sinais que Deus coloca no nosso quotidiano. A vigilância ativa de que fala o Tempo do Advento requer a capacidade, ou se quisermos a sensibilidade, para nos deixarmos desafiar pelos outros e pelo modo como Deus se faz presente no seu agir. O quotidiano, com as múltiplas experiências de vida que proporciona, é o contexto natural da nossa vivência de fé e a oportunidade sempre renovada de acolher e perceber a Deus nos seus diversos sinais e manifestações. 
 
Os simples e os humildes, muitas vezes fora do esquema religioso e até da ambiência das Igrejas, são os escolhidos para acolherem a revelação de Deus. Assim aconteceu com os pastores de Belém, que eram os pobres e os sem-abrigo daquele tempo (Lucas 2, 8-20). Foi a eles que o anjo se dirigiu e foi por eles que pela primeira vez a boa nova do Deus menino foi anunciada. Eles cantaram louvores a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto (v. 20).
 
Celebrar o Natal é também ser capaz de assumir e viver uma espiritualidade que faz suas as dores e os gemidos à nossa volta. Uma espiritualidade natalícia capaz de escutar outras vozes, mesmo que estas tenham um discurso e uma acentuação diferente daquilo que habitualmente escutamos no remanso das nossas Igrejas. Verdadeiramente, a incarnação de Deus no menino Jesus faz da vida o lugar natural da revelação divina e santifica cada pessoa. Na humanidade de Jesus, toda a humanidade foi abençoada por Deus. No desfigurar do rosto das vítimas da violência é o próprio Deus que é desfigurado. Na sua morte é Deus que é crucificado.
 
Crer na incarnação e celebrá-la em cada Natal constitui, pois, um renovado compromisso não só com aquele que é a Vida, Jesus Cristo, como também com a própria vida, que na sua essência é o espaço e o tempo da teofania de Deus junto dos homens e das mulheres. Celebremos o nascimento de Jesus sem esquecer as mortes e a dor causadas pelo pecado humano. Que o sentido de esperança e de eternidade que cada Natal nos traz nos reafirme na missão a que somos chamados, para glória de Deus e bem da humanidade.
 
Um Santo Natal para todos e um abençoado ano de 2018!
D. Jorge Pina Cabral
Igreja Lusitana
 
 
 
 
 

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